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A cadeia de valor na análise ESG
Neste artigo, o professor da Copead-UFRJ Celso Lemme traz dicas práticas de como analisar aspectos socioambientais na cadeia de fornecedores
FONTE: Valor Econômico
Imagine que você fosse contratado para fazer a avaliação das práticas de sustentabilidade de uma grande rede de supermercados, visando a uma certificação. Você teria livre acesso a todas as lojas da empresa, em qualquer dia e horário, sem aviso prévio, de forma a possibilitar uma avaliação isenta.
Suponha que, durante semanas de trabalho, sua equipe visitou todas as lojas, verificando os diversos temas da agenda socioambiental, como eficiência energética, tratamento de resíduos e relações trabalhistas. Todas as unidades atendiam aos temas avaliados. Você concederia o certificado de operação sustentável a esta rede de supermercados?
Apesar dos pontos positivos, possivelmente não estaríamos seguros para aprovar a certificação. Considerando que a finalidade de uma rede de varejo é fazer chegar ao público um amplo conjunto de produtos, dos mais diversos tipos, ainda não teríamos resposta para questões importantes. De onde vieram os produtos expostos nas gôndolas do supermercado e para onde irão os seus resíduos pós-consumo? Os alimentos de origem animal estão associados a áreas de desmatamento ou a criadores que não adotam práticas de bem-estar animal? A escolha dos produtos oferecidos levou em consideração o futuro descarte das embalagens?
Ao nos depararmos com essas questões, temos que incorporar à análise ESG o conceito de cadeia de valor, voltando a atenção para etapas que ocorrem antes e depois das operações que estão sob controle total da empresa.
Para explorar esse ponto, basta olharmos para um dos temas mais importantes da agenda socioambiental internacional, as mudanças climáticas. No Brasil, em torno de 50% das emissões de gases de efeito-estufa (GEE) são relacionados ao uso da terra e ao desmatamento, em parte associados à pecuária. Ao fazer um inventário de emissões de GEE, grandes frigoríficos constatam que grande parte está associada ao escopo 3, mais especificamente à cadeia de fornecedores. Isto traz um desafio para os seus programas de redução de emissões, exigindo esforço de rastreamento de origem do gado, bem como seleção e qualificação de fornecedores.
Outros setores têm seus principais desafios de escopo 3 na outra ponta da cadeia de valor, após a etapa de venda. Podemos olhar para a indústria automobilística, com a preocupação dos impactos ambientais e sociais dos automóveis nos centros urbanos, assim como pensar na destinação do lixo eletrônico gerado pela indústria de tecnologia e comunicação.
A mesma abordagem pode ser adotada em outros setores, ampliando o escopo da análise ESG nos ecossistemas de negócios. Evitamos, assim, que a visão limitada às operações internas gere estratégias e práticas socioambientais incompletas, que podem apenas transferir os problemas para diversos pontos da cadeia de valor, sem soluções efetivas através de ações abrangentes e integradas.
Esta questão é particularmente importante no Brasil, pela sua configuração empresarial. Temos em torno de 400 grandes empresas listadas na bolsa de valores (B3), de um total de, aproximadamente, 20 milhões de empresas. Isto significa que somos um país, essencialmente, formado por micro, pequenas e médias empresas, que respondem por parcela relevante do emprego e do PIB. Muitas delas fazem parte das cadeias de valor dos grandes empreendimentos, que podem ter um efeito indutor nas políticas e práticas da agenda ESG das empresas menores.
Importante reconhecer que a gestão socioambiental integrada da cadeia de valor envolve negociações e compensações com diversos agentes econômicos. O aprendizado dos últimos anos, em diversos setores, pode ajudar neste esforço, sugerindo iniciativas como:
- Disponibilizar aos fornecedores um conjunto simplificado de boas práticas empresariais, com métricas simples para monitoramento e recompensas associadas à pontuação e ao progresso ao longo do tempo. Embora possa ser inevitável a eliminação de alguns fornecedores, estímulos positivos costumam gerar bons resultados, além de efeito multiplicador, conhecido como “inveja positiva” ou “inveja produtiva”;
- Nas empresas micro, pequenas e médias, começar pelas chamadas “low hanging fruits”, ou seja, os temas da agenda ESG de aplicação mais fácil, com resultados mais rápidos e seguros. Isto pode ter um efeito de aprendizado e motivação, ajudando a criar uma cultura de inovação e aperfeiçoamento contínuos;
- Vencida a inércia inicial, estimar uma curva de abatimento marginal simplificada, como orientação para as ações seguintes. Não é necessário utilizar este termo técnico no diálogo, bastando deixar claro que os alvos são as ações de baixo custo e alto impacto, abordagem intuitiva para a seleção de estratégias eficazes;
- Na outra ponta da cadeia de valor, a comunicação e o trabalho conjunto com os consumidores podem gerar consciência e inovação. São conhecidos os programas de empresas que fornecem pontos de descarte adequados para embalagens ou produtos utilizados. Também são disseminadas as ações de empresas de serviços públicos que concedem descontos em comunidades carentes em troca de coleta de material reciclável. A pandemia da COVID-19 trouxe novas experiências, como projetos de apoio a bares e restaurantes por empresas de bebidas, desenvolvendo um sistema de vouchers para consumidores finais, destinado ao financiamento desses estabelecimentos nos momentos críticos do isolamento social.
Uma palavra final vai para a importância de entender as características das cadeias de valor, respeitando as culturas empresariais e os diferentes estágios da gestão para a sustentabilidade corporativa. São pontos fundamentais na transição justa para uma economia sustentável, através de engajamento setorial, horizontes de análise adequados e estratégias corporativas coerentes. Como diz o ditado popular, “se quiser ir rápido, vá sozinho, mas se quiser ir longe vá com muita gente”.
*Professor de finanças e de sustentabilidade corporativa do Instituto COPPEAD de Administração da UFRJ
Sobre o autor:
Celso Lemme é professor de Finanças e Sustentabilidade do Coppead Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Administração, com concentração em Finanças, e Mestre em Engenharia de Produção pela UFRJ.
Este texto registra a visão do autor, sem qualquer comprometimento do Instituto COPPEAD de Administração, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde passou as 3 últimas décadas.
(*) Este artigo reflete a opinião do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso destas informações.