Por que o gás natural é tão caro no Brasil; e como a Argentina pode mudar isso

Não é só o tamanho das reservas de Vaca Muerta. É o ambiente de livre concorrência

FONTE: InvestNews.

Um metro cúbico do gás natural custa US$ 0,07 nos Estados Unidos. Aqui, US$ 0,44.

Ou seja: para cada US$ 1 milhão que uma termelétrica de lá gasta com esse combustível, uma daqui desembolsa US$ 6 milhões. “Escala 6 x 1”. E nem estamos falando de câmbio, já que a comparação é sempre em dólar mesmo – custe a moeda americana o quanto custar.

É por isso que a nossa conta de luz entra em bandeira vermelha quando o nível das hidrelétricas cai. Nesses momentos, acionam-se as térmicas, e a maior parte delas é movida a gás natural, que vale ouro no Brasil.

Também sofre a indústria que precisa de calor – caso da de alimentos e bebidas, que demanda gás para pasteurização, secagem etc. Penam igualmente as fábricas de fertilizantes; as moléculas do gás natural (metano puro) são matéria-prima ali. Dado o preço alto no mercado nacional, 85% dos nossos fertilizantes são importados.

O gás natural é caro no Brasil porque o tanto que produzimos por aqui não dá conta da demanda. O que chega da Bolívia, importado via gasoduto, também não basta para complementar. Resta trazer GNL, o gás natural liquefeito – geralmente dos EUA. E esse é bem mais dispendioso, já que viaja de navio.

Ilustração de um “metaneiro” – navio que transporta GNL, o gás natural liquefeito. Getty Images

Não só. Antes de embarcar, o gás precisa ser refrigerado a -162 ºC. E quando quando chega ao porto de destino tem de passar por uma regaseificação para entrar nos tubos brasileiros. Tudo isso, mais o frete, custa os olhos da cara. E o preço do gás por aqui vai para as alturas – pois o preço do GNL acaba determinando o valor do gás produzido no Brasil, e também o daquele que vem da Bolívia, mesmo que o transporte desse não saia tão caro assim.

Em anos de seca, com as hidrelétricas pela hora da morte, a importação de GNL bomba. Em 2021, por exemplo, aportaram no Brasil 26 metros cúbicos por dia (m³/d). Bem mais do que aquilo que chega da Bolívia. Pior. As reservas por lá estão se esgotando, por falta de investimento em prospecção. A estimativa é a de que, em 10 anos, eles só consigam enviar, no máximo, 5 milhões de m³/d – míseros 7% da nossa demanda total.

A alternativa mais realista para evitar o colapso é encontrar outro fornecedor externo que possa vender para a gente via gasoduto – de preferência numa quantidade grande o suficiente para reduzir nossa dependência do GNL. E a boa notícia é que isso aconteceu.

Há 15 anos, quando a Petrobras começava a tatear o pré-sal, a Argentina descobriu uma reserva monstruosa de gás natural em suas terras, perto da fronteira com o Chile. É a área de Vaca Muerta, uma formação geológica cheia de gás do tamanho de Alagoas (e batizada assim por conta de uma serra homônima lá por perto).

Desde o começo da década passada foram desenvolvendo a extração de gás em Vaca Muerta. A Argentina dependia do gás da Bolívia, como nosostros. Não mais. Agora já é exportadora – envia para Chile por gasodutos. Mas ainda há pelo menos 8,7 trilhões de metros cúbicos a explorar (o bastante para sustentar a demanda mundial de hoje por um século).

E o Brasil, vizinho de porta, é um destino óbvio de exportação.

Tanto que no dia 18 de novembro os governos do Brasil e da Argentina assinaram um “memorando de acordo” com a ideia de viabilizar o comércio de gás canalizado entre os dois países – dado o interesse estratégico para ambos.

A Argentina ganha uma fonte de moeda forte; recurso escasso por lá. E o Brasil uma de gás natural barato, recurso escasso por aqui. De acordo com o Ministério de Minas e Energia, o gás argentino chegaria às nossas distribuidoras por US$ 0,26 a US$ 0,30 o metro cúbico – até 40% mais barato do que hoje.

Segue uma tabelinha para ilustrar melhor, agora com os preços por milhão de BTUs (British Thermal Units), o padrão do mercado (e que equivale a 26,8 metros cúbicos).

A expectativa é terminar 2025 com 2 milhões de m³/d vindos de Vaca Muerta, conforme fecham-se os primeiros contratos de fornecimento. E o objetivo é chegar a 30 milhões de m³/d até 2030 – o que reduziria nossa dependência de GNL mesmo num cenário de forte aumento na demanda de gás natural nos próximos anos.

Nada mau. Tanto que uma semana depois do memorando, em 27 de novembro, saiu o primeiro negócio: a francesa TotalEnergies, uma das várias companhias de óleo e gás que opera em Vaca Muerta, fechou um acordo de exportação com a brasileira Matrix Energia. E virão muitos mais – porque o encanamento para trazer gás lá do pé dos andes até o chuveiro da sua casa já estava pronto antes mesmo da descoberta de Vaca Muerta.

O lado bom da cizânia

Tudo por conta de uma ironia do destino. Os gasodutos argentinos que traziam gás boliviano já passavam por cidades que ficam sobre a área de Vaca Muerta.

Como a Argentina deixou de importar gás da Bolívia, dá para inverter a direção. O gás dos hermanos sobe até as terras bolivianas e de lá flui para a rede brasileira de gasodutos.

Para alcançar os 30 milhões de m³/d será preciso mais estrutura. Mas a que existe hoje já basta para dar o ponta pé inicial.

E Vaca Muerta traz uma vantagem inusitada. “A cereja do bolo é o fato de estarmos numa janela em que não há alinhamento entre governos”, diz Rivaldo Moreira Neto, diretor da área de infraestrutura da consultoria Alvarez & Marsal.

O ponto de Rivaldo é o seguinte. Se Lula e Milei estivessem em lua de mel, é provável que as petroleiras estatais dos dois países tomassem conta do parquinho, com Petrobras e YPF, sua equivalente argentina, monopolizando todos os acordos de fornecimento – num padrão inimigo da concorrência e amigo dos preços altos.

Ele cita como exemplo o caso do gás boliviano. “O mercado brasileiro nunca pôde ir, ele mesmo, buscar gás. Sempre foi a Petrobras [junto à YPFB, a estatal boliviana do setor]”. Pior para o Brasil: a estatal sempre tabelou o gás boliviano usando como referência o preço do GNL, naturalmente mais caro.

O caso de Vaca Muerta é bem diferente. 25 companhias de óleo e gás operam ali – incluindo a Petrobras, que atua como coadjuvante (tem uma participação de 34% em um dos diversos campos ali, junto com a YPF e a Pampa Energía, um grupo privado da Argentina).

Do lado brasileiro, o jogo é o mesmo: várias distribuidoras daqui começam a buscar seu gás em Vaca Muerta por conta própria. Cria-se aí um ambiente de livre concorrência, que produz preços mais baixos – por cortesia da cizânia ideológica entre o governo daqui e o de lá.

Com ou sem rusgas entre futuros mandantes, que o cenário siga assim. Estado bom, afinal, é Estado que não atrapalha.

Agradecimento: Diogo Lisbona, pesquisador do FGV Ceri – Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura