Trump muda as regras do comércio global e desafia o Brasil a jogar com inteligência
Enquanto o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, embaralha o comércio internacional, o Brasil e outros países reavaliam suas estratégias
FONTE: Veja Negócios.
Por Márcio Juliboni e Felipe Carneiro, de Los Angeles
Como empresário, Donald Trump não queria ser comparado a um jogador — alguém que faz apostas arriscadas e conta com a sorte. Para ele, o ideal era dar as cartas. “Ser o dono da banca é melhor”, disse certa vez. Como presidente dos Estados Unidos, Trump continua o mesmo e aspira o controle de uma banca muito maior: o comércio mundial. Com isso, pretende reverter o enorme déficit nas trocas do país, que saltou 17% no ano passado e somou 918 bilhões de dólares. Sua primeira aposta foi alta: no início do mês, impôs pesadas tarifas a mais de 150 países, incluindo o Brasil. Dias depois, em meio a protestos, suspendeu a medida por três meses e se dispôs a negociar com quem lhe trouxesse ofertas “fenomenais”. Agora, o mundo tenta saber se ele deseja mesmo negociar e se o tarifaço é apenas um estratagema. Outra possibilidade é que Trump planeja reindustrializar os Estados Unidos, e as sobretaxas são inegociáveis, pois protegem as empresas locais da importação predatória e forçam as multinacionais a investir lá. “Trump parece seguir a segunda opção, mas ninguém sabe de fato”, diz Jason Furman, professor da Universidade Harvard que assessorou por oito anos o então presidente Barack Obama (leia a entrevista). Sem clareza sobre as reais intenções da Casa Branca, governos e empresas estudam o que fazer.
Caso Trump leve a sério as negociações, o poder de barganha de cada país será vital. Um exemplo é o tratamento dado ao Vietnã e à União Europeia, com a qual os Estados Unidos registraram um déficit de 236 bilhões de dólares em 2024. Ambos propõem zerar as tarifas de importação dos artigos americanos se receberem o mesmo em troca. Mas, enquanto os vietnamitas são ignorados, os europeus são recebidos em Washington. Mesmo a China, a suposta vilã da história, que fez 300 bilhões de dólares de superávit no comércio bilateral, pelo que foi taxada em até 245%, possui bons trunfos. O país poderia, por exemplo, comprar mais produtos agrícolas dos Estados Unidos, em troca de tarifas menores sobre suas exportações — e não seria uma surpresa. Em 2019, no primeiro mandato de Trump, os dois lados fecharam um acordo semelhante que não chegou a ser implementado, devido à pandemia de covid-19.
Alckmin e Mauro Vieira: missão de convencer Trump de que o Brasil não merece sobretaxas (Ton Molina/Fotoarena/.)
Tal acordo seria péssimo para o Brasil, hoje um dos maiores fornecedores da China. “Competimos com os Estados Unidos na exportação de grãos e carne”, diz Larissa Wachholz, analista do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. A soja é o carro-chefe das nossas exportações e, em 2024, rendeu 43 bilhões de dólares, dos quais, 32 bilhões vieram da China. O país também respondeu por 47% dos 12 bilhões de dólares que exportamos de carne bovina. Como torcer para Trump e Xi Jinping não se entenderem não resolverá nossos problemas, os negociadores brasileiros, liderados pelo vice-presidente, Geraldo Alckmin, e pelo chanceler, Mauro Vieira, buscam uma moeda de troca para oferecer a Washington. Uma opção seria cortar a tarifa do etanol de milho americano, hoje em 18%. Trump já se queixou em público sobre a questão e observou que cobrava apenas 2,5% do nosso etanol de cana — isso, claro, antes de nos impor a tarifa mínima de 10%. Embora essa sobretaxa seja pequena quando comparada às de outros países, seu impacto em algumas áreas será relevante. É o caso do suco de laranja, que tem nos Estados Unidos seu maior mercado. O setor é um bom exemplo de como Trump pode machucar o bolso de seus eleitores. A produção americana de laranja enfrenta problemas com pragas que arruínam os pomares. Por isso, não supre toda a demanda. “As exportações brasileiras ajudam os Estados Unidos a sustentar o consumo”, diz Ibiapaba Netto, diretor da CitrusBR, que representa os produtores nacionais. “A sobretaxa pressionará os preços para os americanos.”
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Até aqui, a premissa é que Trump vai negociar, mas os países também se preparam para o caso de isso não acontecer, ou de as conversas não renderem resultados substanciais. Nesse cenário, aqueles onerados com as menores tarifas, como o Brasil, ganhariam competitividade no mercado americano em relação a rivais mais penalizados. Um exemplo é o setor de calçados, que exportou no ano passado 217 milhões de dólares para lá. Antes do tarifaço, os sapatos brasileiros pagavam uma tarifa média de 17% — a mesma de rivais como o Vietnã. Com os novos impostos, o Brasil passará para 27%, enquanto os vietnamitas arcarão com 63%. O problema é que não se sabe se a demanda total por calçados — ou por qualquer outro produto — será a mesma, caso as sobretaxas sejam retomadas em julho. O maior temor é de que a economia americana encolha. “Não há dúvida de que o risco de recessão hoje é maior do que há um mês”, afirma Jeremy Siegel, professor da Wharton School, onde Trump se formou em 1968. “Mas não há dados conclusivos de que ela virá.”
Xi Jinping: o presidente da China estreita relações com vários países (Athit Perawongmetha/AFP)
Com ou sem recessão, os exportadores vergastados por Trump buscarão outros mercados. Os vencedores desse jogo serão os países que encontrarem o melhor equilíbrio entre promover seus produtos no exterior e proteger o mercado interno contra uma invasão de mercadorias antes destinadas aos Estados Unidos — um drama que o Brasil já vive. No primeiro trimestre, as importações de produtos chineses aumentaram 35% sobre o mesmo período de 2024, somando 19 bilhões de dólares e cravando um novo recorde. Vários setores clamam por uma solução. As siderúrgicas, por exemplo, defendem medidas mais duras contra o aço importado, que já abocanha 25% do mercado doméstico, ante a média histórica de 11%. O risco de que a indústria brasileira seja uma vítima involuntária da guerra tarifária de Trump é alto. “A invasão chinesa é um alerta de que somos uma válvula de escape comercial para eles”, diz André Matos, executivo-chefe da casa de investimentos MA7 Negócios. Estancar as importações sem melindrar nosso maior comprador de soja e minério de ferro pode requerer outra estratégia: incentivar os chineses a produzir aqui. Não seria difícil, já que seus investimentos diretos no Brasil crescem com força. Os dados mais recentes da Apex, a agência federal responsável por atrair capital estrangeiro, mostram que a China acumulava 45,3 bilhões de dólares investidos no país em 2023, um salto de 22% sobre o ano anterior, destacando-se projetos de energia, infraestrutura e automotivo.
Sede da Comissão Europeia: empresas brasileiras pedem pressa para concluir o acordo do Mercosul com o bloco europeu (Denis Thaust/SOPA Images/LightRocket/Getty Images)
Aproveitar o tarifaço para buscar novos mercados é a estratégia mais promissora no longo prazo. Empresas brasileiras esperam, por exemplo, que o protecionismo de Trump convença os envolvidos a acelerar a conclusão do acordo Mercosul-União Europeia. “A vigência plena do acordo seria muito favorável ao Brasil”, diz Márcio Ferreira, presidente da Cecafé, que reúne os exportadores de café, segundo item mais vendido para os europeus, atrás do petróleo. Em 2024, a UE importou 5,6 bilhões de dólares de grãos não torrados. Conquistar novos mercados requer mais que negociação. O Brasil precisa enfrentar os graves e conhecidos problemas que corroem sua competitividade há décadas, como a precária infraestrutura logística. Segundo o Banco Mundial, de 2014 a 2018, o país permaneceu empacado nesse quesito, atrás do Brics. Nos cinco anos seguintes, a melhora foi suficiente apenas para o empate com o bloco. “Exportar produtos é fácil”, diz José Augusto de Castro, presidente da AEB, que reúne os exportadores brasileiros. “Difícil é exportar impostos e ineficiências.” Enquanto Trump embaralha o comércio mundial, o Brasil conta com poucas fichas para bancar seu jogo. É melhor apostá-las com sabedoria.
“Trump cravou uma estaca no liberalismo”
Para Jason Furman, professor da Universidade Harvard e ex-assessor de Barack Obama, os Estados Unidos até sobreviveriam isolados do mundo, mas não seria bom para ninguém.
Furman: “Déficits nem sempre significam que um país está abusando dos Estados Unidos” (Christophe Gateau/dpa/AFP)
Como o senhor vê a divisão no próprio governo americano sobre as tarifas? Há duas visões em jogo. Uma defende que as tarifas são apenas uma ameaça para que todos os países reduzam as taxas de importação, criando um mundo com mais comércio. A outra não quer isso e espera que os Estados Unidos produzam tudo o que precisam. Nesse caso, as sobretaxas não seriam negociáveis. Acho que Trump segue essa linha, mas essa é a grande incerteza: ninguém sabe o que ele fará.
Os outros países se aproveitam dos Estados Unidos? Déficits comerciais não indicam necessariamente um abuso. O erro de Trump é supor que um déficit sempre prova que o outro país quer nos prejudicar. Veja Madagáscar, com quem temos déficit. Eles nos vendem baunilha e compram muito pouco de nós, porque são mesmo pobres. A América não será grande de novo vendendo mais para Madagáscar. Então, impomos uma enorme tarifa de importação. O único resultado é que compraremos menos baunilha.
No futuro, esta época será vista como aquela em que a China virou um parceiro comercial mais confiável para o mundo que os Estados Unidos? Não acho. Sendo uma democracia liberal, partilhamos uma certa visão de mundo com muitos países. O que me preocupa são algumas potências de médio porte, como a Índia, com as quais não temos exatamente um espírito em comum. Talvez, a ideia de que todas as nações se tornariam inexoravelmente democracias liberais lideradas pelos Estados Unidos nunca tenha sido possível. Mas Trump, com certeza, cravou uma estaca enorme no coração desse sonho.
Dizer que o tarifaço representa o fim da hegemonia americana é um exagero, então? Não será o Armagedom. O comércio exterior representa 13% da economia americana. Se fechássemos totalmente nosso mercado a outros países, não morreríamos de fome. Mas não morrer de fome seria se contentar com muito pouco.
Publicado em VEJA, abril de 2025, edição VEJA Negócios nº 13